Durval Carvalhal

Fazer de cada queda um passo de dança.

Textos



 
        AS COTAS E A DEMOCRACIA



 
          Durval Carvalhal

 




navionegreiro_poro.jpg      

      “Apesar disso, morrer era melhor, para muitos escravos. Os suicídios eram frequentes. Enforcavam-se, comiam terra, afogavam-se, jogavam-se de montanhas, esborrachando-se nas  pedras”, escreve Chiavenato em O Negro no Brasil, pg. 135.

       A crônica de atrocidades contra os negros no Brasil é enorme. Chegavam muito cedo. “No geral, a média de idade dos negros escravos desembarcados na Bahia ou no Rio, variavam de 12 a 15 anos”. Eram vendidos como “carne negra” nas lojas dos comerciantes. Comiam comidas cozidas no meio da rua, em enormes caldeirões. Trabalhavam até 08 ou 10 horas por dia e os salários eram pagos com chicote.

        Na guerra do Paraguai, os negros serviram de bucha de canhão, iam à frente, através de “Batalhões formados totalmente de negros, sem um único branco...”.

       Na verdade, os negros sempre alavancaram a economia brasileira. Do Pau-Brasil, do açúcar, do ouro até hoje, o povo negro tem sido muito importante no processo de desenvolvimento do País, não obstante o preconceito.

       A abolição da escravatura, na forma como foi concretizada, foi uma infâmia, pois o ex-escravo, sem nenhum preparo, sem nenhum apoio, ficou na rua da amargura. Ou voltava a trabalhar por um prato de comida, ou viveria nos guetos e nas periferias em casebres paupérrimos.

       Tudo era vedado ao negro. Não podia ir à escola; professar sua religião, o candomblé; jogar capoeira; tocar o samba e nem comprar nada, nem um animal, mesmo se já fosse alforriado.

       Relata João da Baiana que chegou a ser preso por causa do samba: “Pandeiro era proibido. O samba era proibido e o pandeiro. Então, a polícia perseguia a gente”.

       Nas décadas de 50 ou 60 do século passado, a polícia ainda prendia quem jogava capoeira nas ruas, tocava violão e fechava casas de candomblé.

        Se o negro, ao longo do tempo, tem contribuído com a pujança da economia brasileira, imagina-se o tamanho e a qualidade dessa contribuição, se ele tivesse facilidades de se aprimorar com cursos universitários. Como se pode deduzir, o Brasil só fez perder com o preconceito racial.

       QUALDADE DA ESCOLA PÚBLICA – Há um consenso de que a escola pública, depois que foi abandonada pela classe média - profissionais liberais, acadêmicos, profissionais da mídia- tornou-se uma escola predominantemente das classes populares. É uma escola que deveria se caracterizar pela excelência, porque o custo já é pago antecipadamente, através dos tributos arrecadados pelo Estado.

       A consequência mais direta é o desvio de recursos públicos e privados para o custeio da escola particular, e a escola pública passou a ser vítima de um cruel e criminoso círculo vicioso: o poder público finge que paga adequadamente aos professores. Estes fingem que ensinam e os alunos fazem de conta que aprendem. Como o débil ensino público é predominantemente frequentado por negros, qualquer tentativa de igualar estes discentes aos que estudam em escola privada, reveste-se de tolice cínica e covarde.

       TEORIA DA EVOLUÇÃO – Imaginemos dois alunos. Um tira duas notas7 e fica com a média sete. O outro obtém as notas 4 e 10, ficando com a mesma média sete. Mas, pela teoria da evolução, o segundo aluno mostra-se superior, porque enquanto o primeiro manteve-se estático, com duas notas iguais, o segundo mostrou evolução, evoluindo da nota quatro para a nota dez.

       Há um convencimento universal de que quem obtém a nota sete está credenciado a prosseguir nos estudos. Mas o negro depara-se com um leque enorme de dificuldades para estudar: é pobre, não se alimenta bem, pega ônibus, não tem livros em casa para estudar, sendo obrigado a se deslocar para bibliotecas; não tem parentes, mormente pais, com boa instrução; não estuda em boas escolas e nem experimenta um bom processo de ensino aprendizagem.

       Porém, muito esforçadamente, ele tira nota oito no vestibular ou Enem. Em contraposição, os alunos ricos, predominantemente brancos, tiram ótimas notas, nove ou 10, e ocupam quase todas as vagas. Dentro dessa ótica, o negro raramente adentrará a universidade pública. 

       Por outro lado, no mundo corporativo, os negros pagam pesados tributos, lembrando que pesquisas recentes do IBGE apontam mais negros e pardos que brancos na sociedade brasileira. É com esses recursos que se criam e se sustentam as universidades públicas. E agora, dá para entender melhor a justeza das cotas?
 
         Argumentos de que todos são iguais são falsos, porque só os negros são discriminados. Argumentos de que vai baixar o nível do ensino universitário também são falsos, haja vista que pesquisas têm provado sobejamente que o cotista tem desempenho igual ou superior aos não cotistas, posto que eles abraçam a oportunidade de estudo com muita garra, responsabilidade e determinação. Argumentos de que vai aumentar o racismo não são verdadeiros, até porque a constituição proíbe a prática do racismo. Argumentos de que a cota deveria ser destinada aos pobres, em geral, fogem ao escopo específico de se corrigir o problema do preconceito, que historicamente só avilta e humilha os negros.

        Injusto seria a população negra continuar trabalhando duro, ajudando no processo de desenvolvimento brasileiro, pagar tributos, sustentar as universidades públicas, mas não ter acesso a elas.

       Os primeiros navegantes não avançaram nas suas viagens, porque tinham medo de cair em um buraco, até que alguém ousou, avançou e constatou que a Terra era redonda, e não havia buraco nenhum.

       Os colendos ministros do egrégio Supremo Tribunal Federal fizeram isso: ousaram, avançaram, fizeram justiça e democratizaram mais a nação brasileira. Dir-se-ia que o Supremo foi Supremo. Que bom!
Durval Carvalhal
Enviado por Durval Carvalhal em 30/04/2012
Alterado em 13/05/2021


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras