COMER ACARAJÉ Durval Carvalhal
Poder-se-ia dizer que a baiana vale por si mesma; que o acarajé, a exemplo do Sol, brilha por si, e que melhor que um abará, só dois abarás.
Pra quem não deglute a cultura baiana, seria até falta de higiene comer em plena via pública, lambuzando mão, rosto e tudo o mais. Seria pouca civilidade ver, nas esquinas, rodas de pessoas a sujar o chão com restos de comida, pedaços de papel sujos de azeite de dendê, recortes de folhas cozidas de bananeira. Poder-se-ia dizer, ainda, tudo de pejorativo sobre o feijão cozido e batido com cebola, gengibre, camarão seco, colocado de molho de um dia pra o outro, enrolado na folha de bananeira ou simplesmente frito na hora para ser vendido puro ou com pimenta, camarão, vatapá e tempero verde. O crepúsculo de Salvador é marcado por este aspecto singularíssimo e de rara beleza, quando pessoas mil: estudantes, trabalhadores, intelectuais, turistas, todos não resistem à tentação de comer algo na mão de uma não necessariamente “preta do acarajé”, escondida no seu vestido rodado, braços cheios de pulseiras, pescoço ornado com colares, touca em volta da cabeça, deixando visível apenas um rostinho faceiro, alegre e bonito. Mas, a “chiqueza” da baiana não está propriamente dito na feitura do abará ou do acarajé, nem na sua estética visual; o chique mesmo está em você comprar uma guloseima, recostar-se num poste, ou num muro, ou num carro, ou em qualquer outro lugar e comê-la com toda voluptuosidade, balançar a cabeça em sinal de aprovação, olhar as pessoas ao redor, ou até mesmo andar pelas ruas comento o maná de feijão cozido com azeite de dendê e, depois, tomar um refrigerante ou um chopinho, ou qualquer bebida gelada para refrescar a garganta... Hoje, depois de enfrentar resistências e concorrências de outros pontos de venda, como bares, supermercados e adeptos de religiões evangélicas, o que vinha descaracterizando essa cultura tradicional, transformando essa iguaria sagrada em produto turístico, as baianas, cortejadas agentes sociais, respiram aliviadamente, porque ela foi reconhecida, pelo Ministério da Cultura, na gestão do Sr. Gilberto Gil, como bem cultural do Patrimônio Imaterial no Livro dos Saberes, cujo registro do ofício da Baiana do Acarajé reconhece, além do acarajé, todos os saberes e fazeres tradicionais aplicados na produção e comercialização das chamadas comidas da Bahia feitas com dendê. Assim como é gostoso degustar os saborosos quitutes da baiana do acarajé, é muito trabalhoso fazê-los, como canta Dorival Caymmi: “Todo mundo gosta de acarajé/ O trabalho que dá pra fazer que é/ Todo mundo gosta de acarajé/ Todo mundo gosta de abará/ Ninguém quer saber o trabalho que dá/ Todo mundo gosta de acarajé/ O trabalho que dá pra fazer que é...”. Durval Carvalhal
Enviado por Durval Carvalhal em 06/07/2012
Alterado em 25/11/2020 |